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O Feminino que emerge das enchentes no Rio Grande do Sul

Por: Joice Lemos


Resumo: O que já pode ser entendido como maior tragédia climática do estado do Rio Grande do Sul, revela que “O Caos é uma ordem por se decifrar”(2002). Nesse contexto, evidenciamos em certa medida e denunciamos camadas do feminino que expressam força e vulnerabilidade em meio ao drama vivenciado pela sociedade sulista. Momento de luta por sobrevivência com enfoque em uma minoria que subsiste ao caos.

 

Palavras-chave: Feminino; tragédia; sobrevivência.

 

Abstract: What can now be understood as the greatest climate tragedy in the state of Rio Grande do Sul, reveals that “Chaos is an order to be deciphered” (2002). In this context, we highlight to a certain extent and denounce layers of the feminine that express strength and vulnerability amid the drama experienced by southern society. Moment of struggle for survival with a focus on a minority that survives in chaos.

 

Keywords: Female; tragedy; survival.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A enchente de 1941. Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas adentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores?Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas…                            Mario Quintana, poema Reminicências, no livro “Sapato Florido”. 1948.

 

Mario Quintana é conhecido como o poeta do cotidiano e dos pequenos detalhes. Foi um mestre da vida que a descreveu com muita delicadeza em seus textos. O trecho do poema supramencionado traz esse tom de relato e conversa sobre sua vivência na enchente que acometeu Porto Alegre em 1941. Oitenta e três (83) anos depois, a população sulista revisita a trágica história contada pelo filho da terra, e seu poema ganha novamente força catártica nos dias mais atuais. A tragédia que acomete o Sul do Brasil nos dias de hoje traz muitas camadas interpretativas. Neste texto, colocaremos o holofote de leitura no universo feminino em meio aos desafios que a enchente apresenta.


Ao longo da história, a mulher se destaca por sua capacidade de superar desafios e se erguer diante das mais adversas circunstâncias. Essa força interior, muitas vezes subestimada, reside em diversas características que a tornam um pilar fundamental da sociedade. A presença feminina é inquestionável na atuação direta dos enfrentamentos que os desafios que a enchente no Rio Grande do Sul traz. De um lado percebemos essa força na atuação de mulheres como Carla Sassi, de 44 anos, que formada em medicina veterinária vem atuando na linha de frente do salvamento de animais das mais variadas espécies. O olhar sensível e a energia atuante de Carla vem possibilitando a sobrevivência desses animais e assegurando a esperança no coração dos tutores que têm seus animais de estimação resgatados. É ainda válido destacarmos a atuação da tenente do Exército, Daliana Schmidt, que vem de forma incansável salvando vidas em locais de difícil acesso. A tenente, junto a sua equipe, chegou a resgatar mais de 100 pessoas em um único dia.  Em reportagem Daliana citou “Enquanto eu tiver forças, eu vou ajudar”. Muitas Carlas e Dalianas podem ser observadas diariamente através dos noticiários na cena catastrófica no Rio Grande do Sul, mulheres que arregaçam as mangas e amenizam, através de suas ações a desigualdade de gênero.


Por outro lado, e não menos importante de se destacar, vemos atônitos, emergir questões relacionadas a violência e desigualdade de gênero em meio ao caos. As vulnerabilidades sociais vivenciadas por mulheres e meninas em nossa sociedade ganham evidência em meio a crise, onde o ser humano tende a catalisar o que há de “melhor” ou “pior” de si. Simone de Beauvoir alertou: “Nunca se esqueça que basta uma crise (…) para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Essa realidade é notadamente aparente diante dos registros de abuso sexual em abrigos que acolhem vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.


As casas de abrigo, que teriam a finalidade de acolher de forma segura aqueles que perderam tudo, acabam se tornando locais perigosos para mulheres e meninas, com relatos de violência e assédio. Quatro homens foram presos por praticarem abuso sexual nesse ambiente.  As vítimas, inclusive menores de idade, eram conhecidas dos agressores e possuíam laços familiares, um ciclo de vulnerabilidade e violência que precisa urgentemente ser interrompido, ao invés de ser intensificado.


É ainda mais preocupante o quadro ao considerarmos a minoria dentro da minoria:  mulheres negras, indígenas, quilombolas, idosas, com deficiência e LBTI+ estão expostas a um perigo ainda mais acentuado. As disparidades estruturais colocam essas comunidades em uma situação de maior vulnerabilidade, o que torna imprescindível a busca por medidas de proteção de forma urgente.


Dito isto, em observação aos dois lados apontados: o da força e o da vulnerabilidade feminina, podemos avaliar que não se trata de polos opostos, mas sim de lados complementares que constroem uma realidade feminina. Somos fortes, adaptáveis, ocupamos lugar de liderança, somos mães, trabalhadoras, etc. Mas, na prática, apesar de todo avanço com relação a legislação que deveria nos assegurar direitos e liberdade humana, ainda estamos vulneráveis e precisamos sempre que houver a possibilidade de pauta falar sobre isso. Assim, consideramos importante reconhecer e celebrar a força da mulher em todos os âmbitos da vida e igualmente apontar para os atravessamentos que a enchente que acomete o Rio Grande do Sul evidencia ao nosso respeito.  Precisamos reforçar que uma ideia só é desconstruída com outra ideia.

 

 

 

 

 

Referência:

BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,1980

Agora: Enquanto eu tiver forças. Balanço Geral. Publicação em 09/05/2024. Acesso em 19/05/2024: <https://www.youtube.com/watch?v=b-gdBuIvxzo>.

Animais ilhados e presos. Balanço Geral. Publicação em 09/05/2024. Acesso em 19/05/2024: <https://www.youtube.com/watch?v=HnDeB_qR5k0>.

Derrida, J. (1967). L'écriture et la différence. Paris: Éditions du Seuil.

PIMENTEL, Ana.(2024) Le monde diplomatique, Ed.202. Maio de 2024. Acesso em 19/05/2024 < https://diplomatique.org.br/mulheres-tragedia-rio-grande-do-sul/>.

QUINTANA, Mário. SAPATO FLORIDO. 1ª edição. Porto Alegre: Editôra Globo, 1948.

SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo. Companhia das Letras. 2002.

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