Por: Juliana Primi
Carolina Maria de Jesus é uma das figuras mais importantes da literatura brasileira, não apenas pela habilidade literária, mas pelo impacto de sua obra em um contexto marcado pela marginalização social e racial. Sua produção literária, centrada em experiências pessoais na favela do Canindé, em São Paulo, tornou-se um marco ao dar visibilidade às condições de vida de milhões de brasileiros negligenciados pela sociedade. Seu trabalho mais notável, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960), é uma narrativa que combina elementos de diário pessoal, crônica social e denúncia política, retratando com crueza e sensibilidade a vida nas favelas brasileiras.
Nascida em 1914 em Sacramento, Minas Gerais, Carolina teve uma vida marcada pela pobreza extrema desde a infância. Embora tenha frequentado a escola Allan Kardec, onde obteve educação por apenas dois anos, foi autodidata e desenvolveu uma forte paixão pela leitura e escrita. Ao se mudar para São Paulo em 1937, instalou-se na favela do Canindé, onde, como mãe solo, criou seus três filhos em meio à precariedade e à violência cotidiana. Foi nesse cenário que Carolina começou a escrever os diários que mais tarde se tornariam seu primeiro e mais famoso livro, Quarto de Despejo.
A descoberta dela como escritora ocorreu em 1958, quando o jornalista Audálio Dantas, em visita à favela do Canindé para cobrir uma matéria, encontrou Carolina discutindo com alguns homens que estavam destruindo brinquedos de crianças. Ao mencionar que "escreveria sobre aquilo em seu livro", despertou a curiosidade de Dantas, que logo ficou impressionado ao ler os diários que ela mantinha. O jornalista, reconhecendo a força literária e social de seus escritos, comprometeu-se a publicá-los.
Publicado em 1960, Quarto de Despejo foi um sucesso imediato, vendendo 30 mil exemplares na primeira edição e 100 mil nas edições subsequentes. O livro foi traduzido para 13 idiomas e distribuído em mais de 40 países, o que conferiu à autora um reconhecimento internacional raro para uma brasileira, especialmente alguém que veio das camadas mais desfavorecidas da sociedade. Sua obra aborda temas como fome, humilhação, violência, a luta pela sobrevivência, e o amor materno em meio à miséria. Esses temas, tratados com uma linguagem acessível e sem artifícios literários, tornam-se ainda mais impactantes pela crueza e autenticidade.
Um dos aspectos mais notáveis de Quarto de Despejo é a capacidade de Carolina em transformar o cotidiano brutal da favela em material literário de grande força. Em um dos excertos, datado de 15 de julho de 1955, Carolina descreve o aniversário de sua filha Vera Eunice, quando, sem dinheiro para comprar sapatos ou alimentos, ela narra com honestidade a necessidade de encontrar sapatos no lixo para presentear a filha. A passagem retrata a dura realidade de quem vive à margem da sociedade, onde até os atos mais simples, como alimentar os filhos ou cuidar da própria saúde, tornam-se obstáculos quase intransponíveis.
Além da fome, tema recorrente em sua obra, a escritora reflete sobre a injustiça social de forma mais ampla: “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças” (2016, p. 25). Essa perspectiva é fundamental para entender como a obra vai além do relato pessoal e se torna um manifesto contra as desigualdades sociais. Ela não apenas narra as dificuldades enfrentadas por ela e seus vizinhos, mas também propõe uma reflexão crítica sobre as condições que perpetuam a pobreza e a fome no Brasil.
A relevância de Quarto de Despejo também pode ser compreendida no contexto político e social da época. Nos anos 1960, o Brasil passava por um período de grande efervescência política e cultural, com o surgimento de movimentos que questionavam a ordem social vigente e reivindicavam justiça social. Nesse sentido, Carolina Maria de Jesus emerge como uma voz autônoma e poderosa, representando, pela primeira vez, a realidade das favelas e dos excluídos de forma direta, sem intermediação de intelectuais ou escritores distantes dessa realidade. Como observam os críticos, a obra de Carolina não apenas documenta a miséria, mas transforma o sofrimento cotidiano em literatura de resistência.
Apesar do enorme sucesso de Quarto de Despejo, as obras subsequentes de Carolina, como Casa de Alvenaria (1961) e Pedaços da Fome (1963), não alcançaram o mesmo impacto comercial, embora mantivessem a qualidade literária. Em Casa de Alvenaria, por exemplo, Carolina relata sua transição da favela para uma casa de alvenaria, uma mudança que, apesar de simbolizar uma melhoria em suas condições materiais, também revela novas formas de exclusão e solidão. Sua obra posterior, muitas vezes considerada "menos política", continuou a explorar as dificuldades enfrentadas pelos pobres e marginalizados no Brasil.
O impacto da escritora na literatura e na sociedade continua a ser sentido. Como aponta Brum (2021), a escritora "fundou movimentos literários que ela não chegou a conhecer", inspirando gerações de escritores das periferias, bem como movimentos culturais como o hip-hop, que se reconhecem como herdeiros de sua literatura de resistência. Carolina abriu caminho para outras vozes marginalizadas, demonstrando que a literatura não é exclusiva de uma elite, mas pode surgir de qualquer lugar onde haja uma história a ser contada.
Embora tenha falecido em 13 de fevereiro de 1977, em relativa obscuridade, o legado de Carolina Maria de Jesus tem sido redescoberto nas últimas décadas, tanto por estudiosos quanto pelo público em geral. Obras inéditas, como Diário de Bitita (1986) e Meu sonho é escrever... contos inéditos e outros escritos (2018), foram publicadas postumamente, reafirmando sua importância. As inúmeras reflexões sobre fome, desigualdade e racismo continuam a ser estudadas e valorizadas, não apenas como parte da literatura brasileira, mas como um testemunho essencial da sociedade de seu tempo.
Referências:
BRUM, E. O que Audálio Dantas fez com Carolina Maria de Jesus? Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2021-11-30/o-que-audalio-dantas-fez-com-carolina-maria-de-jesus.html. Acesso em 30 set. 2024.
DALLARI, D. Viver em sociedade. São Paulo: Moderna, 1995
JESUS, C. M. Quarto de despejo. Diário de uma Favelada. São Paulo: Ática, 2016.
LITERAFRO-UFMG. Carolina Maria de Jesus. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/58-carolina-maria-de-jesus. Acesso em 30 set. 2024.
LOPES, E. Denúncia e reflexão no Quarto de despejo. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/index.php?option=com_content&view=article&id=1025&catid=29. Acesso em 30 set. 2024.
PRADO, L. Carolina Maria de Jesus é referência para quem contesta o poder. Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/carolina-maria-de-jesus-e-referencia-para-quem-contesta-o-poder/. Acesso em 30 set. 2024.
SAID, T. Para conhecer um Brasil de brasileiros, Carolina Maria de Jesus em quatro atos. Disponível em: https://jornal.usp.br/diversidade/para-conhecer-um-brasil-de-brasileiros-carolina-maria-de-jesus-em-quatro-atos/. Acesso em 30 set. 2024.
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