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Rachel de Queiroz: olhar feminino e sensível sobre o sertão nordestino

Por: Juliana Primi


Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa e mestra

em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, com Graduação em

Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa pela mesma universidade.

Atua como professora há mais de quinze anos no ensino superior. Áreas de

atuação: Literaturas Brasileira e Afro-brasileira, Literaturas Africanas de Língua

Portuguesa, Psicanálise e Literatura, Comunicação, Mulheres e Política e Estudos

sobre Gênero.









Rachel de Queiroz, nascida em Fortaleza em 1910, é uma das grandes expressões da literatura brasileira do século XX, trazendo para sua obra a força e a sensibilidade próprias de quem conhece bem a realidade do sertão. Sua infância foi marcada pelas dificuldades impostas pela seca de 1915, que a obrigou, com a família, a se deslocar entre o Rio de Janeiro, Belém e novamente o Ceará, experiências que seriam decisivas na construção de seu olhar literário e social.


Em uma época em que as mulheres enfrentavam enormes barreiras para se afirmar no campo intelectual, Rachel de Queiroz destacou-se precocemente: formou-se professora, iniciou a carreira jornalística em 1927 e, em 1930, publicou O Quinze, seu primeiro romance, consagrado pela maturidade literária e pela maneira corajosa e realista de retratar a seca e seus efeitos devastadores sobre o sertanejo. Como mulher nordestina, captou com sensibilidade não apenas as adversidades climáticas e sociais da região, mas também a complexidade dos papéis femininos em um contexto patriarcal.


Envolvida com as lutas políticas de sua época, chegou a ser presa em 1937 pela atuação junto ao Partido Comunista Brasileiro. Ainda assim, seguiu produzindo intensamente, colaborando com jornais e revistas, traduzindo, escrevendo peças teatrais e romances que exploram com profundidade as questões psicológicas e sociais do Nordeste. Sua trajetória pioneira culminou, em 1977, com sua entrada na Academia Brasileira de Letras, tornando-se a primeira mulher a ocupar uma cadeira na instituição, um marco histórico para a presença feminina na literatura e na intelectualidade brasileiras.


A prosa regionalista de Queiroz aborda, com um olhar feminino e inovador, as dificuldades do sertão, o sofrimento humano e o papel das mulheres em meio à adversidade. Obras como O Quinze (1930), João Miguel (1932), Caminho de Pedras (1937) e As Três Marias (1939)


revelam o compromisso em dar voz aos marginalizados e questionar as estruturas sociais vigentes.

No romance O Quinze, inspirado nas memórias da grande seca de 1915, Rachel entrelaça duas narrativas centrais: a trajetória de Chico Bento e sua família, símbolo da resistência e sofrimento do sertanejo, e a história de Conceição, uma jovem culta e independente da cidade, que enfrenta os dilemas da autonomia feminina em uma sociedade patriarcal. Conceição, personagem que espelha aspectos da própria autora, representa a mulher nordestina instruída, que, mesmo sensibilizada pelas mazelas sociais, busca afirmar sua independência e recusa o casamento com Vicente, preferindo trilhar seu próprio caminho.


Ao adotar uma criança de retirantes e ajudar Chico Bento e sua família a migrar, Conceição expressa não apenas solidariedade, mas também sua capacidade de agir e transformar realidades, num gesto de resistência e afirmação do feminino. No emblemático trecho da obra, vemos Chico Bento submisso diante de uma carta que sela seu destino:

Chico Bento entrou, no mesmo passo lento, a modo que curvado sob a cruz de remendos que ressaltava vivamente, como um agouro, nas costas desbotadas da velha

blusa de mescla.


Foi direto a um caritó, ao canto da sala da frente, e tirou de sob uma lamparina, cuja luz enegrecera a parede com uma projeção comprida de fumaça, uma carta dobrada. E como quem vai reler uma sentença que executou, para se livrar da responsabilidade e do remorso, ele penosamente mais uma vez decifrou a letra do administrador, sobrinho de dona Maroca:

Minha tia resolveu que não chovendo até o dia de São José, você abra as porteiras e solte o gado. É melhor sofrer logo o prejuízo do que andar gastando dinheiro à toa em rama e caroço, pra não ter resultado. Você pode tomar um rumo ou, se quiser, fique nas Aroeiras, mas sem serviço da fazenda.

Sem mais, do compadre amigo...


Longamente ficou o vaqueiro olhando aquelas letras que exprimiam tanta desgraça.

Depois dobrou o papel, tornou a pô-lo no lugar, puxando o braço vivamente como se se libertasse, livrando-se do temor supersticioso que lhe travava as mãos, porque uma carta daquelas lhe parecia coisa amaldiçoada (QUEIROZ, 2012, p. 19-20).

A leitura da carta, quase como uma sentença de morte, expõe a dura relação de submissão e resignação dos sertanejos às forças naturais e sociais. Ao mesmo tempo, Rachel de Queiroz confere ao relato um tom de humanidade profunda, retratando o sofrimento silencioso, o temor supersticioso e a persistência diante da adversidade.


Como mulher nordestina, Rachel de Queiroz construiu uma obra que alia a crítica social à delicadeza psicológica, oferecendo ao leitor não apenas um retrato da seca, mas também das forças femininas que, mesmo em meio à aridez, semeiam resistência, compaixão e transformação.


Referências

BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015.

         Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Editora 34, 2010.

CANDIDO,   A.   Iniciação   à   literatura   brasileira.   São                  Paulo: Humanitas (FFLCH-USP), 1999.

CEREJA, W.; COCHAR, T. Literatura brasileira: em diálogo com outras literaturas e outras linguagens. São Paulo: Atual, 2013.

NILC-USP.        Rachel        de         Queiroz.        Disponível                       em: http://www.nilc.icmc.usp.br/nilc/literatura/raqueldequeiroz.htm.

Acesso em 02 jun. 2025.


QUEIROZ, R. de. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2012.

 
 
 

1 Comment


O olhar da Rachel de Queiroz sobre o sertão sempre me tocou profundamente — tão sensível, tão real, tão humano. A forma como ela retratava os desafios e as esperanças do povo nordestino continua atual e inspiradora. E falando em realidades brasileiras que pedem mais atenção e discussão, tem um tema que vem ganhando espaço: a legalização dos cassinos no Brasil. Achei interessante como esse artigo aborda o ponto de vista dos próprios brasileiros sobre o assunto: https://pizzafria.ig.com.br/especial/brasileiros-legalizacao-dos-cassinos/

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